Um tiro assinala a segunda morte de Mariana, atingindo violentamente seu coração, que há muito já não batia. Até então, a eternidade era sempre igual: décadas deslizando pelos corredores do palácio em seus sapatos de cetim, sendo mera espectadora do mundo dos vivos. Vendo e sendo vista apenas por uma menina estranha, igualmente silenciosa e invisível. Agora, ela não sabe o que irá acontecer – só sabe que terá de deixar os limites do palácio, o cenário de beleza e ilusão em que se refugiou – e enfrentar o mundo.
Com rara delicadeza e perícia na arte da escrita, Mara Bergamaschi cria uma biografia imaginada, uma “história fantasmagórica-filosófica de muitos anos em um só dia”. E tece com engenho uma narrativa que une a vida, a morte e a imaginação de duas jovens solitárias, separadas no tempo por mais de um século.
Além de absurda e indigna, minha segunda morte neste início de terceiro milênio foi também injusta. O tiro me acertou aos vinte e poucos anos, no auge da beleza, os cabelos negros, fortes e longos, penteados em trança. Da primeira vez, morri mais velha, aos 44 anos, não souberam exatamente de quê, tantas eram as enfermidades indomadas. Mas tive uma morte que poderia chamar de natural, tranquila, na hora mesma do sol poente. Estava deitada em minha cama de dossel e pude contemplar pela janela os verdes montes já desnudos antes de o imenso cansaço me fechar definitivamente os olhos. Ao meu lado, meu marido, que tateava ansiosamente minhas mãos frias, dois doutores e o padre. Também os tempos eram outros, outro lugar, outras condições; eu, outra.
Na verdade, minha primeira morte foi calma, mas, é preciso dizer, terrível. Morrer é algo imensamente triste para quem parte. Nas últimas horas, não resistia ao menor toque, à mais leve carícia. Qualquer contato humano, qualquer sinal de amor, fazia-me chorar, no início mansamente, depois com todas as minhas últimas forças. Pensavam que eram dores, mas não, era tão somente a perdição, a desesperança, a impossibilidade de retribuições e recomeços, a solidão do fim da vida.
(...)Mas não contava com esta segunda e estúpida morte: ela traz de volta, de uma só vez, minhas mais fortes lembranças. A verdade é que não gosto muito de pensar no fim da minha vida. Sempre que isso acontece, sinto-me tentada a romantizar a realidade, apagar a tristeza e o desespero, idealizar meu passado, em nome da beleza. Minha vontade é rememorar apenas a parte da minha vida que, se contada, pareceria um conto de fadas. O reino encantado da aparência. Quem gostaria de olhar para trás e ver um quadro de mesquinharias e banalidades? Existem coisas que, mesmo depois da morte, é melhor esquecer. Então,